Proposta de redação sobre a violação dos direitos humanos pela mídia brasileira

A partir da leitura dos textos motivadores seguintes e com base nos conhecimentos construídos ao longo de sua formação, redija texto dissertativo-argumentativo em modalidade escrita formal da língua portuguesa sobre o tema "Como resolver o problema das violações de direitos humanos provocados pela mídia brasileira?", apresentando proposta de intervenção que respeite os direitos humanos. Selecione, organize e relacione, de forma coerente e coesa, argumentos e fatos para defesa de seu ponto de vista.


TEXTO I - 
(Revista Radis, 173, Programa Radis, Ensp/Fiocruz)




A câmera colocada na sala de estar revela a menina de 9 anos sendo abusada por um vizinho. Com sua nudez e identidade expostas, a única proteção para essa criança é um recurso visual para cobrir as genitais e, em alguns trechos, o rosto. Os longos 17 minutos exibidos na TV mostram a cena do estupro repetidas vezes e indicam o mapa do crime: a reportagem entrevista o pai da criança, mostra o local de residência da vítima e do agressor, interpela a mulher do suspeito. Além do estupro sofrido, a criança e toda sua família têm seu direito à privacidade e sua dignidade violados pela emissora de TV, que cometeu diversos abusos em relação a garantias previstas na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

As imagens do estupro, que teriam sido registradas pela família, foram veiculadas em 2014 na emissora cearense TV Cidade, afiliada à TV Record, e exibidas nos programas Cidade 190 e Cidade Alerta CE. O caso gerou a comoção de entidades da sociedade civil voltadas para a defesa dos direitos humanos, que se mobilizaram em frente à emissora denunciando as violações com o lema: “Nossa dor não é espetáculo”. Ainda assim, a TV Cidade continuou exibindo as imagens do estupro, o que só foi interrompido com a ação do Ministério das Comunicações que, pressionado pela sociedade civil, multou a empresa em R$ 23 mil, por ter descumprido normas dos serviços de radiodifusão, ao atentar contra o sentimento público expondo pessoas a situações de constrangimento. 

Para ajudar no combate a esse tipo de prática jornalística que viola os direitos e a dignidade humana, adotada por programas policiais exibidos em qualquer horário da programação, a campanha “Mídia Sem Violações de Direitos”, que parte de uma iniciativa do Coletivo Intervozes e da Andi Comunicação e Direitos, fez um levantamento no conteúdo veiculado por 28 programas jornalísticos com esse perfil em 10 capitais brasileiras, ao longo de 30 dias (de 2 a 31 de março de 2015). Os resultados revelam que o caso da cena de estupro exibida no Ceará não é isolado, ao contrário, é uma prática cotidiana desses programas chamados de “policialescos”, dedicados a narrativas de violências e criminalidades, com forte apelo popular e cunho sensacionalista. Em apenas um mês, os programas de rádio e TV analisados cometeram 4.500 violações de direitos previstos em leis brasileiras, em acordos internacionais ratificados pelo Brasil ou normas autorregulatórias, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. A campanha lançou ainda uma plataforma, em outubro de 2016, para receber denúncias de violações que podem ser feitas por qualquer pessoa e que devem ajudar no monitoramento desse tipo de conteúdo e pressionar medidas por parte dos poderes públicos.

As violações são ainda mais graves porque as emissoras de rádio e televisão são concessões públicas, como ressalta Suzana Varjão, jornalista da Andi que coordenou o levantamento. “Esses programas passam em qualquer horário, sem qualquer tipo de mediação. O impacto não é somente sobre os indivíduos, mas sobre a mentalidade dos futuros cidadãos”, aponta, ao lembrar que crianças são cotidianamente expostas a esse tipo de programação inadequada, porque a exibição desses conteúdos ocorre geralmente na hora do almoço e à tarde. A banalização da violência tem um impacto negativo na formação de crianças e adolescentes e na disseminação da cultura da violência, segundo Helena Martins, jornalista e representante do Intervozes no Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH). “Muitas vezes, crianças assistem a esses programas sozinhas e acabam sendo educadas nessa lógica da naturalização da violência e incentivadas a não acreditar nas instituições democráticas”, reflete.

Entre as práticas mais recorrentes, está a exposição indevida de pessoas, quando a emissora de TV ou de rádio revela a intimidade de uma pessoa, vítima ou não de violência física, como ocorreu 1.704 vezes ao longo de um mês nos 28 programas. Também foram identificados casos de desrespeito à presunção de inocência (1.580 vezes), violação do direito ao silêncio (614), exposição indevida de famílias (259) e incitação à desobediência às leis ou decisões judiciárias (151) e ao crime e violência (127), todos estes em desacordo com a Constituição Federal. A identificação de adolescentes em conflito com a lei também são recorrentes, percebidas 39 vezes em um mês, o que contraria o ECA. “Num pequeno trecho de alguns minutos, uma narrativa dessas comete inúmeras violações”, comenta a jornalista da Andi. Nos casos mais graves, foram observados até mesmo discursos de ódio e preconceito (17 vezes) e tortura psicológica ou tratamento desumano (9), em que os suspeitos são submetidos a agressões e pressão psicológica, na tentativa de levá-los a uma confissão ao vivo.

Violência ao vivo

O linchamento é televisionado. O apresentador do Cidade 190, da TV Record, esbraveja: “Tá com pena? Leva ele pra sua casa, né?” Ele se refere a um suspeito de ter assaltado uma mulher que foi espancado por pessoas que viram o ocorrido. Em um discurso de ódio que incita à violência, o apresentador ainda critica as entidades que defendem os direitos humanos: “Agora direitos humanos vêm aqui agora (sic) para incendiar junto com ele aí também!” Cenas como essas são recorrentes em uma prática jornalística que incentiva a cultura da violência e a ideia de que é preciso fazer justiça com as próprias mãos. “Esses programas policialescos traduzem as teorias mais retrógradas sobre criminalidade e segurança pública para a população”, avalia Helena Martins. Segundo a jornalista, ao assumir os conceitos de “tolerância zero” e de que a imprensa está sempre “alerta”, esse tipo de mídia busca legitimar leis mais duras e que apostam na punição e no encarceramento.

Ao invés de contribuir para uma sociedade mais segura, esse jornalismo faz o que Helena considera um “debate rasteiro sobre segurança”, que favorece a perpetuação da violência ao defender políticas que já se mostraram equivocadas. “Eles promovem um discurso de que bandido bom é bandido morto, de que direitos humanos são apenas para bandidos e fortalecem uma agenda regressiva no campo da política”, assinala. Outra prática recorrente é a difusão do discurso de que “lei no Brasil não presta”. “Há um combate recorrente e sistemático aos instrumentos que compõem a democracia brasileira. Não é apenas desrespeitar, mas incitar ao desrespeito”, analisa Suzana Varjão. Ela cita o caso do apresentador Marcelo Rezende, do “Cidade Alerta” da TV Record, que teria dito: “O que a lei diz é problema da lei”, incentivando o descumprimento e o descrédito em relação às leis brasileiras.

Por trás dessa indignação veiculada nos programas policiais, com frequência se esconde um discurso baseado no conservadorismo religioso. Radis comprovou que, recentemente, o apresentador Marcelo Rezende esteve no programa “Fala que eu te escuto”, da Igreja Universal do Reino de Deus, e defendeu a pena de morte com base nos textos da Bíblia. “Deus diz: ‘Aquele que mata sem razão, há de morrer”. (...) Então é assim, faz, paga e paga com a vida”, afirmou. De acordo com o levantamento do Intervozes e da Andi, o Cidade Alerta lidera o Ranking de Violações de Direitos Humanos na TV Aberta, divulgado na Plataforma Mídia Sem Violações. Ainda segundo os dados, os programas produzidos em São Paulo foram os que registraram o maior número de narrativas com violações (26,6%), seguidos pelo Distrito Federal (17%) e Recife (16,2%).

Não por acaso, o Brasil registra em média um linchamento por dia, de acordo com dados divulgados em 2015 pelo livro “Linchamentos — A justiça popular no Brasil”, do sociólogo José de Souza Martins. Para Suzana Varjão, existe uma relação entre o simbólico e o real. “Narrativas midiáticas constroem o quadro social que a gente considera como real”, analisa. O caso emblemático foi o que ocorreu com os proprietários da Escola de Educação Infantil Base, em São Paulo, em 1994, que foram acusados de pedofilia em matérias como “Kombi era motel na escolinha do sexo”. A escola foi depredada e proprietários e funcionários, mesmo tendo sido comprovada sua inocência pela Justiça posteriormente, sofreram ameaças de morte, perderam emprego e desenvolveram problemas de saúde.

Pra criança nenhuma ver

Por serem considerados jornalísticos, os programas policiais não têm restrição de horário para serem exibidos. Mas uma decisão do Supremo Tribunal Federal (31/8) fragilizou o mecanismo de classificação indicativa para o restante da programação, ao acabar com a multa para emissoras de rádio e TV que exibirem programas em horário não recomendado para determinada faixa etária (Radis 169). Na avaliação de Helena Martins, o risco é de haver a expansão desse modelo de programas violentos para o entretenimento em qualquer horário. “O fim da classificação indicativa é um total desrespeito à construção dessa política junto com a participação da sociedade”, afirmou, acrescentando ainda que a mudança legitimou a ideia de que liberdade de imprensa é a liberdade para “fazer qualquer coisa”, sem nenhuma responsabilidade.

A educadora Rosa Maria Matos, da Rede Nacional da Primeira Infância, relata que já ouviu de uma criança de 6 anos que não tinha conseguido dormir de noite por conta de um programa de TV que assistiu à tarde junto com a irmã. Segundo ela, a televisão está ali o tempo todo como “ambiente de fundo” para a formação dessas crianças, que assistem sozinhas à TV aberta, porque a mãe ou os responsáveis têm que trabalhar. “As crianças das favelas estão com seus espaços coletivos inseguros, não tendo acesso à educação integral”, aponta, como fator agravante. Helena também se refere ao risco da programação violenta para a formação de crianças e adolescentes. “Quando a gente passa a naturalizar a morte, a ver um corpo e a fazer sinais atrás para aparecer na TV, que tipo de seres humanos estamos produzindo?”, questiona.

Para mudar o artigo do ECA que impede a identificação de adolescentes suspeitos de ato infracional, a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara aprovou o Projeto de Lei 7.553/2014 (5/10), que passa a permitir a exposição desses jovens a partir de 14 anos. De acordo com o relator do projeto, o deputado federal Cláudio Cajado (DEM-BA), a divulgação das imagens ajudaria na detenção e punição do menor infrator. Mas para Helena Martins, essa ideia é um equívoco, porque a vedação à exposição pela imprensa não impede que as imagens sejam usadas na investigação pela polícia, mas busca evitar apenas a exposição indevida.

Para a coordenadora do movimento Moleque — Movimento de Mães pelos Direitos dos Adolescentes no Sistema Sócioeducativo, Mônica Cunha, as consequências desse discurso para as famílias de “jovens em conflito com a lei” são muito grandes. “Nós somos as vítimas diretas e cotidianas dessa mídia que se apresenta como justiceira e faz questão da punição, mesmo que o jovem não tenha ido a julgamento”, avalia. O desrespeito à presunção de inocência pode não ter volta e impactar na formação de um adolescente, considera Suzana. Essa prática ocorre quando o comunicador afirma que determinada pessoa ou grupo de indivíduos cometeu um crime sem comprovação e sem que tenha havido julgamento. “Com base apenas no boletim de ocorrência ou em depoimento de policiais, esses programas costumam divulgar nomes e imagem de acusados, afirmando a autoria do ato, sem que tenha sido comprovado ou sequer aberto inquérito de investigação”, afirma a jornalista. Segundo ela, a presunção de inocência é um dos fundamentos da ética jornalística. 
Autor: 
Luiz Felipe Stevanim 
(Revista Radis, 173, Programa Radis, Ensp/Fiocruz)
Disponível em: <http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/revista-radis/173/reportagens/violacoes-na-tela>. Acesso em 03/05/2017





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